Para o Fórum 21
De Montevideu
“A ambição deste governo será resgatar a felicidade pública”. Com este compromisso, em clima de alegria, esperança e conciliação, Yamandú Orsi, o novo presidente do Uruguai, tomou posse no último sábado (1º. de março), em Montevideu marcando o retorno da Frente Ampla (FA) no comando do país.
Fundada em 1971, a coalização dos partidos de esquerda e centro-esquerda, formada dois anos antes da brutal ditadura uruguaia (1973-1985), conquistou o poder em 2005, permanecendo 15 anos consecutivos sob os governos de Tabaré Vazquez, o primeiro presidente de esquerda do Uruguai, e de José Pepe Mujica, a grande voz da esquerda global.
O ciclo de crescimento econômico e desenvolvimento social foi interrompido em 2020, com a eleição de Luis Lacalle Pou do Partido Nacional (PN) que, em meio a escândalos de corrupção, não conseguiu emplacar o sucessor, obtendo 48% dos votos contra os 52% da Frente Ampla.
Aos 57 anos, Yamandu Orsi, professor de História e por dez anos intendente do distrito de Canelones, chega à Presidência em um contexto muito distinto de seus predecessores. Mudanças climáticas, transformações tecnológicas, disputas geopolíticas e a ascensão de uma extrema-direita no continente (e no globo) somam-se aos desafios internos do país, o segundo menor da América Latina, com 3,3 milhões de habitantes.
Em Montevideo, sua capital, ainda é possível encontrar taxistas progressistas e respirar o ar de uma nação onde a extrema direita é débil, o estado laico um valor, a ditadura militar uma aberração e a concertação política, a marca do ambiente político. Aqui, palavras como felicidade, prazer, alegria ainda fazem parte do discurso político.
Yamandú Orsi

Conhecido por ser moderado e pragmático, Orsi “vem de uma esfera subnacional e departamental em um país cujos departamentos têm um nível de autonomia muito menor. Foi intendente (governador) do segundo distrito de maior importância do país, Canelones, e sua capacidade de angariar os votos do interior, em geral mais conservador do que a capital, foi muito importante em termos eleitorais”, conta Nicolas Pose, professor de Economia Política Internacional da Universidad de la República (UdelaR).
Tanto no Palácio Legislativo quanto na Praça da Independência, Orsi exaltou a democracia uruguaia, os políticos e os partidos. “A democracia não é um ponto de chegada, mas uma estrada, um processo coletivo construído, dia após dia”, que pode ser medido “por sua capacidade de garantir melhores direitos, gerar mais igualdade e possibilitar uma melhor convivência entre as pessoas”, afirmou na cerimônia do Parlamento.
“O regime democrático ganha sentido e perdura no tempo se for capaz de proteger o povo, dando condições essenciais de trabalho, saúde e segurança alimentar, cultura e recreação. Em outras palavras: a boa saúde da democracia está intimamente ligada à realização de certos objetivos e padrões de bem-estar”, complementou.
Contrariamente ao que passamos no Brasil – um golpe em 2016, a prisão de Lula em 2018 e uma intentona golpista bolsonarista em 2023 –, ao longo de quatro décadas ininterruptas, o Uruguai vem conseguindo manter a sua democracia intacta. Em sua fala, Orsi enfatizou a valorização da política, dos partidos e do legado de seus antecessores na Presidência, agradecendo nominalmente a cada um, pela defesa da Constituição.
Participaram da cerimônia Julio María Sanguinetti do Partido Colorado, Luis Lacalle Herrera do Partido Nacional e José Mujica (Frente Ampla), citado inúmeras vezes. “Em tempos de proliferação das expressões da antipolítica e das lógicas excludentes, sejamos sempre adversários, mas nunca inimigos”, clamou o presidente Orsi.
Nuestra America

Autoridades (Lula no centro) durante juramento de Orsi no Palácio Legislativo em Montevideu. Foto: Ricardo Stuckert/ PR
“A integração latino-americana, explica o professor Pose, é uma agenda muito necessária, em termos normativos, sobretudo neste contexto global de maior fragmentação dos desafios geopolíticos e geoeconômicos. Um país pequeno como o Uruguai depende da mobilização da agenda de atores maiores. Creio que o Brasil tem um papel para jogar como líder de um processo de maior convergência e de integração no continente”.
Entre as autoridades latino-americanas, marcaram presença os presidentes Lula (Brasil), Gabriel Boric (Chile), Gustavo Petro (Colômbia), Luis Arce (Bolívia), Santiago Peña (Paraguai), Xiomara Castro (Honduras), José Raúl Mulino (Panamá), Bernardo Arévalo (Guatemala) e Luis Abinader (República Dominicana).
Para eles, Orsi reiterou a “vocação de paz’ do Uruguai e apontou caminhos: “Uma das nossas principais responsabilidades é que esta região continue a ser um continente de paz com maior estabilidade, equilíbrio social e estabilidade econômica e que sejamos capazes de uma melhor integração”.
E defendeu os acordos do Mercosul, o fortalecimento da Celac, uma participação mais ativa do Uruguai na OEA e o aprofundamento da cooperação Sul-Sul, além de multiplicar acordos com grandes países, bilateralmente ou multilateralmente.
Câmara baixa
A troca de governo no Uruguai se dá com a renovação do Congresso composto pelas Câmaras Alta (Senado) e Baixa (Deputados). “As forças políticas se dividem em duas coalizações de vários partidos: a que vai do centro à esquerda (Frente Ampla) e a que vai do centro à direita (Partido Nacional). Cada um deles detêm, mais ou menos, 40% dos votos. Tudo é muito estável e as eleições são definidas a partir dos 20% restantes. Ou se debanda para um lado ou para outro, o que tende a levar a resultados sempre muito parecidos”, explica Pose.
Pela primeira vez, a Frente Ampla contará com maioria somente no Senado. “Na Câmara baixa nenhum desses dois blocos obteve maioria, porque um partido muito pequeno, com um discurso bastante radical e uma postura antissistêmica obteve 3% dos votos, garantindo duas cadeiras no Parlamento e, assim, impedindo a hegemonia de um dos dois blocos”, detalha o professor.
Como antídoto contra o discurso antissistêmico, Orsi lembrou que “não há República, nem liberdade, nem coexistência pacífica sem democracia” e que “não há democracia sem partidos políticos”, e agradeceu: “Obrigado democracia. Obrigado República. Obrigado partidos políticos por fazerem deste Uruguai um plural de convivência que ainda desperta espanto no mundo.”
“Temos de valorizar esta construção num momento em que existe uma proliferação de expressões da antipolítica e de lógicas de exclusão, para não lamentarmos a descrença na política e suas consequências”, arrematou.
Ele também tranquilizou a oposição: “Não chegamos ao poder com a lógica da imposição. Esse suposto país de duas metades, onde a metade vencedora recorre à ordem e ao comando, e a outra metade deve ser condenada a obedecer sob protesto. Não voltamos ao poder com a verdade revelada, com a reposta perfeita para todos os problemas, tampouco, temos o afã de acertar conta nenhuma.”
Desafios do novo governo

Pesquisa do Instituto Nacional de Estatística (INE) do Uruguai, divulgada em 2022, após a pandemia, mostrava que a cada 1.000 uruguaios, 110 não ultrapassavam o rendimento mínimo para cobrir suas necessidades básicas”, o equivalente a 11% da população. Deste universo, crianças com menos de seis anos eram as mais afetadas (21%), seguidas pelas de 6 a 12 anos (20,3%), adolescentes (18,9%) e adultos (9,5%).
“Apesar de o Uruguai ter uma taxa de pobreza agregada baixa para o contexto da região (em torno de 10%), quando se olha apenas a franja das crianças e dos adolescentes, o índice dobra para 20%. A falta de condições para o crescimento dessas crianças afetará a vida de muitas pessoas e o desempenho tanto social como econômico do país nos próximos anos”, analisa Pose.
Em seu discurso, Orsi disse ser “inaceitável que um país de rendimento elevado como o [Uruguai] tenha uma em cada cinco crianças e adolescentes vivendo abaixo do limiar da pobreza. Temos que garantir um mínimo de dignidade e assegurar que cada uma possa se alimentar em casa e temos de encorajá-las na aventura da aprendizagem”.
Ele também destacou que não existem “crianças pobres sem adultos pobres”, comprometendo-se com políticas que “assegurem os meios de subsistência para as famílias que tenham crianças, em particular, de mulheres chefes de família”.
Aumento da violência
Ao conversar sobre os gargalos do país com a população uruguaia nas ruas, a percepção generalizada é de aumento da violência.
Como explica Pose, efetivamente houve uma piora na questão da segurança, mas ele pondera que, “historicamente, o principal problema dos uruguaios eram as questões econômicas, o desemprego, a inflação, mas quando a Frente Ampla assumiu o governo, sobretudo nos dois primeiros governos, a economia foi muito bem e o país cresceu a boas taxas. A partir daí, a segurança passou a figurar como a principal preocupação, porque a economia deixava de ser um problema tão alucinante”.
Em sua avaliação, a Frente Ampla não soube reverter o crescimento da criminalidade, o que foi explorado com sucesso pela campanha de Lacalle Pou em 2019. Abordando a questão em sua fala, o presidente Orsi pediu a cooperação entre os países irmãos para construir uma matriz de proteção social no continente. Disse também que “a segurança é um direito humano fundamental”.
E assegurou: “Não haverá contemplação com o crime e a repressão do crime, embora saibamos que a solução será insuficiente e até demagógica se não prestarmos atenção às múltiplas causas da violência. Vamos combater o crime de frente, a criminalidade organizada, o tráfico de drogas e a lavagem de capitais e de ativos”.
Crescimento e liberdades individuais
Um terceiro desafio destacado por Pose é a necessidade de um crescimento mais robusto. “O crescimento anual médio do Uruguai, na última década, girou em torno de 1% ao ano – um ano um pouco mais, noutro ano um pouco menos. A tendencia é insuficiente para sustentar as demandas e necessidades da cidadania no Uruguai”, avalia.
O novo governo, neste tema, comprometeu-se com um crescimento “não só em maior quantidade, mas em qualidade, garantindo um piso de dignidade salarial e uma melhor distribuição das oportunidades”.
Orsi elencou diversos setores que pretende impulsionar, do agronegócio à agricultura familiar, passando pela criação de uma secretaria para Ciência, Tecnologia e Inovação, ancorada na Presidência. A expectativa é “consolidar o Uruguai como uma referência neste domínio e promover seu desenvolvimento sustentável por meio da integração na economia global da União Europeia”, disse.
Orsi também fez uma defesa contundente das liberdades individuais, pauta capturada pelo discurso antissistêmico no continente, atrelando-as ao acesso à cidadania. “A liberdade individual em que acreditamos é a chave da convivência e a igualdade de oportunidades nos aspectos essenciais da vida” disse.
E questionou a população uruguaia:
“Quanta liberdade pode exercer ou desfrutar um compatriota que tem que passar semanas a fio indo a um posto de saúde para obter seus remédios? Quão livre é alguém que sofre de sérios problemas de moradia ou de trabalho? Quão livres são as mulheres que se sentem violadas na rua ou atrás de portas fechadas em suas casas? Quanta liberdade individual plena pode ser exercida em meio à desigualdade coletiva?”
¿Dónde están?
Ao longo da cerimônia, em vários momentos, a memória dos mortos e desaparecidos políticos veio à tona. A começar pela quebra de protocolo ao longo do cortejo de Orsi e Cossi no conversível elétrico da Presidência pelos 2,5 quilômetros que separam o Legislativo da Praça da Independência.
Em meio à euforia da população e o ir e vir das bandeiras da Frente Ampla, o carro parou e ambos saltaram do veículo para saudar, na esquina da rua Nicarágua, um grupo de familiares dos mortos e desaparecidos e ativistas pela verdade histórica.
Ao contrário do Brasil, que ainda precisa de um Oscar para abordar a questão a força e o repúdio necessários, no Uruguai, o rechaço às violações cometidas pelos militares é um imperativo. Tanto que a primeira fala de Orsi no Parlamento rememorou os duros anos de perseguição política no país.
“Em 1985, o país recuperou a institucionalidade democrática após 13 anos de ditadura civil-militar, o período mais doloroso da nossa História, marcado pela perseguição, crueldade política e humana como método de governo; e pela pilhagem econômica como parte central desse projeto político. Há sequelas que continuam até os dias atuais”, disse o presidente da República.

Um outro momento forte de manifestação da memória histórica se deu diante da apresentação dos militares ao novo governo eleito. Assim que começou o desfile militar, um coro crescente, vindo do coração da 18 de Julio, soou cada vez mais alto, chegando com força nos ouvidos das Forças Armadas, em particular, de seus mais jovens membros.
¿Dónde están? gritaram todos, em um coro unânime, puxado pelos familiares dos mortos e desaparecidos políticos e ecoado pelas ruas, em uma prova efetiva do resultado de um trabalho permanente e incansável de educação democrática e repúdio do autoritarismo no país.
Foi de arrepiar.
“Há um povo que nos espera”
“Há muito para fazer, muito trabalho, sem dúvidas, mas temos que fazer com a cabeça e o coração sempre postos naqueles que mais necessitam de nós. Há um povo que nos espera e tem expectativas em cada mudança de governo”, afirmou Orsi à multidão que se espremia pelas ruas arborizadas de Montevideu para acompanhar a cerimônia.
Além do presidente e de sua vice, todos ministros do novo governo tomaram posse de seus cargos durante a cerimônia. Na sequência, eles entraram no belíssimo Palacio Estevez, onde receberam as autoridades estrangeiras presentes no evento, contemplando 111 países e com a presença de 15 chefes de Estado.
Na Praça da Independência, sob a monumental estátua de Artigas, herói fundador do Uruguai, a festa popular ganhou música e avançou pela noite adentro com as crianças livres correndo pela avenida 18 de Julio, famílias em roda nas esquinas compartilhando ideologias, amigos passando o mate, muito mate e casais se beijando ao sabor da democracia.
Um dia histórico.

Imagens: Tatiana Carlotti/Fórum 21

