2003
Revista Biografia (2012)
Bagatelas! (2005)
Meu avô gostava de fumar sentado nos degraus da varanda. Pouco dizia. Nossa língua era complicada demais para o italiano enraizado nele. Riscava o fósforo e sumia bem ali na nossa frente. Às vezes, minha avó gritava e ele abria os olhos para confirmar se continuávamos lá. Éramos apenas nenas. Um reino de maria-chiquinhas, balas de goma e conga nos pés.
Naquela época, meu pai trabalhava no correio e minha mãe ensinava datilografia para as moças ricas do Klabin. Ficávamos ali, boneca de pano, jardim, peteca, carrinho e a suspeita de que meu avô não sabia direito quem era quem entre nós.
Minhas irmãs não se importavam, tinham nojo quando o velho pigarreava e cuspia no chão do quintal. Eu não conseguia tirar os olhos daquele cuspe, vontade de passar a roda do carrinho por cima.
O velho vendia cachaça. Vinha freguês até de Interlagos conhecer sua pinga com pitanga. Paravam a Kombi lá fora e o barulho dos passos e os vidros esverdeados do engradado. Meu avô cobrava caro e quando não queriam pagar o preço certo expulsava todo mundo. Depois que iam embora, minha avó desabava: va fan culo, Valentim, va fan culo. Ele retrucava calado e se trancava no barracão.
Nunca foi dinheiro a razão do meu avô.
Lá dentro, era tudo de madeira. Dezenas de barris de diversos tamanhos e aromas. Lembro do cheiro forte e da luz sempre suspensa. Era álcool misturado à madeira úmida e à ferrugem das ferramentas organizadas em sequência. De tudo o que me foi proibido até agora, nada se compara ao cheiro daquele lugar.
Talvez não fosse uma proibição verdadeira.
A porta sempre esteve aberta e lá dentro, ele fingia não me ver. Meus dedos ficavam pretos de pó e eu tentava decifrar as letras pintadas no vermelho vivo dos barris. De costas, meu avô escrevia, o corpo encurvado no banquinho. Depois rabiscava a coluna imensa de números na lousa que eu tanto cobiçava.
Em uma daquelas tardes, quando eu saia do barracão, ele largou o giz e se virou imenso. Os olhos eram azuis e de uma transparência. Meu avô me levou pelo corredor e num copinho desses de bar despejou um dedo de pinga para mim.
Senti o odor que evaporava do copo e era aquele o cheiro do hálito do meu avô. Quando o líquido amoleceu a minha língua, meus olhos se encheram d´água.
Então, meu avô, numa felicidade besta, deu um tapa de “homem para homem” nos meus ombros de criança. Depois arregalou as sobrancelhas e bebeu a sua dose.
Foto de Capa: Jornal da USP

